Conto sem título de uma história sem importância

Aos 11 anos, mesmo sem conhecer Baudelaire, M. Já havia flertado com as sensações de variados e baratos paraísos artificiais. Sem hipocrisia poética, preferia a fantasia à realidade. Era analfabeto e morava na rua.

O mundo real era impiedoso, duro, faminto...precisava de qualquer alívio imediato para aliviar as dores do corpo e da alma. Transcendia sua mente a muitos lugares, mas o preferido era o jardim florido, onde o sol brilhava sempre e aquecia-o enquanto seus pés enterravam-se maciamente na terra úmida. Ali deitado, passeando os olhos de pupilas dilatadas pela suavidade azul de um céu de poucas nuvens, quase esquecia-se da laje de concreto fria – ao mesmo tempo seu travesseiro e cama- e da brisa gelada do inverno a arrepiar-lhe as canelas.

Desde cedo aprendeu a usar a imaginação fértil. Esta capacidade bem desenvolvida servia como proteção a um mundo insistente em não notar sua existência. As vezes até funcionava bem. Quase podia sentir o sabor dos almoços fartos e caros enquanto observava através dos vidros dos abastados restaurantes da cidade.

Considerava-se sortudo, pois quando cansava de perambular como fantasma pelas ruas e avenidas movimentadas do progressista lugar, tinha um trunfo. A catedral da Igreja era admirada religiosamente devido a sua beleza arquitetônica, cravejada de vitrais e ouro. Impotente e poderosa, como um deus furioso sentado em seu trono eterno pronto para punir. Já que o padre da cidade era seu amigo, deixava-o passar o tempo que quisesse na torre do sino, a mais alta da cidade. De lugares altos como este, podia sussurrar seus sonhos ao pé do ouvido das estrelas. Tinham a ver com comida e abraços quentes. M. gostava mesmo de subir no telhado da torre, pois assim ficava escondido. A amizade com o padre havia ficado estranha desde aquela noite chuvosa quando o sacerdote, com um olhar de lobo, colocou a mão dentro do seu calção. Não ia mais até a entrada da igreja nos dias de missa, percebendo aquele mesmo olhar enquanto ouvia o sermão do lobo para a multidão. Ironicamente ele as chamava de ovelhas de Deus.

Intervalo para o almoço.

Garfo e faca tintilam no prato. A gordura no canto da boca brilha enquanto um suculento e gordo pedaço de carne é devorado com a voracidade de uns cinco leões. O homem desvia um instante o olhar para o jornal ao lado da mesa e lê rapidamente na página do setor policial:
“Menor de rua é encontrado morto no último andar de uma construção abandonada.”

Para alguém que parecia não existir, até que a ocasião da sua morte ganhou algumas linhas na imprensa local. Era o sombrio e único instante de conhecimento do qual M. nem pode gozar. Ninguém jamais soube os motivos do acontecimento. Ninguém jamais procurou saber. Poderia ter morrido congelado, ou brigando por um cobertor velho. Poderia ter morrido de fome, ou simplesmente ter se cansado de imaginar uma outra vida. Na verdade pouco importava. Era assim mesmo, a notícia de sua morte serviria agora como forro para a gaiola de algum pintassilgo. M. não pediria mais esmolas nos semáforos, como uma mancha de sujeira no pára- brisa dos carros. Quem sabe a sensação de limpeza até pudesse melhorar as vendas no comércio.

Naquela tarde, uma fria chuva começou a cair sobre a Cidade Imóvel, tentando inutilmente amolecer as pedras e lubrificar as ruas movimentadas do lugar.

Escrito pela Vanne

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